Minha querida Mamãe, meu querido Papai. Estou obedecendo ao meu avô Joaquim (1) que me trouxe para escrever. Peço para que me abençoem. Querida Mamãe, a senhora pede notícias e rogou tanto, mas tanto, perante as orações, que me vejo aqui para trazer a esperança ao seu coração e fortalecer em meu pai a confiança na vida. Não sei como fazer isso direito: escrever falando o que se passa. Meu avô está me auxiliando, mas, por dentro de mim, estou como quem traz o pensamento tropeçando na vontade de chorar. É preciso ser forte e ser um homem para receber um compromisso desses. Papai sempre nos ensinou que devemos ser valorosos com a luz da coragem na frente de nossos passos, mas é tanta dor para vencer, querida Mamãe, que eu não tenho forças para remover a situação. Meu avô diz que não devo procurar desculpas e sim tomar o assunto sem mais demora. Por isso, quero dizer a você, Mãezinha, para confiar em Deus e na vida. Papai é calado e tantas vezes sem manifestações iguais às nossas (2), mas para ele também estou garatujando esta carta. Rogo a vocês para não se deixarem dominar pelo sofrimento, embora este conselho deva ser ditado para mim mesmo. Estamos assim como num telefone direto, em que o fio do lápis vai formando as minhas palavras, sem que eu possa receber as palavras de meus pais queridos, ao mesmo tempo. Sei tudo o que tem acontecido. Sei, Mãezinha, que a senhora está sendo considerada uma pessoa em perturbação mental (3). Mas nós entendemos daqui as suas aflições. Três filhos esmagados quase ao chegarem em casa... E a nossa separação de repente. Isso transtornaria o cérebro de um gigante, quanto mais os nossos corações sempre ligados pelo carinho. Desde que acordei aqui, ouço os seus gritos do coração: suas palavras que não são faladas, suas preces de aflição no silêncio e suas lágrimas que ai na Terra ninguém vê... Mas peço à senhora, em nome da nossa Sheilinha, do João Batista e em meu nome, para viver e viver com fé em nosso reencontro. Mamãe, se não fosse a falta que a gente experimenta de casa, se não fosse a voz da senhora e do papai por dentro de mim, eu diria que tudo está bem. Mas posso dizer agora que tudo melhorará, quando melhorarem na paciência e na confiança. Estamos num parque de crianças que vieram para cá apressadamente (4). Temos tratamentos, exercícios, lições e muito carinho. Muitos meninos já crescidos ajudam os menores e são auxiliares de enfermeiras queridas que nos amparam, como sendo filhos do coração. Temos repouso, mas o repouso é atravessado pelas recordações que se fazem tão vivas como se fossem relâmpagos coloridos e parados em nossas lembranças. Nessas telas da alma, vemos o que se passa à distância e, além disso, suas vozes, Mãezinha, nos alcançam por todos os meios. Peço a você – a você que é nosso querido anjo da guarda – entregar a Deus os acontecimentos de fevereiro (5). Não chore mais com desânimo e aflição. A senhora, sempre carinhosa e sempre imensamente boa para nós, não choraria mais com tanta angústia se visse a nossa querida Sheila cair de aflição, querendo ir ao seu encontro sem poder (6)... Ajude-nos, querida Mamãe. Aqui temos muita gente dedicada ao bem. A Irmã Luiza nos abençoa – benfeitora que não conheci - e um santo a quem devemos chamar por Irmão Ukuru nos cerca de muito amor, quase todos os dias (7). O tio Diogo (8) e o avô Joaquim são companheiros que tudo fazem por nosso auxílio. De tia Maria (9) nada sei. Pergunto por ela, mas recebo apenas a notícia de que ela vai bem. De certo modo, ainda não estou muito em mim. Se tivesse de retomar os estudos aí em casa, creio que não seria possível. Tenho a cabeça assim aflita, como quem não saiu de um susto muito grande e não posso lembrar com muita insistência aquela veraneio (10) e nem a nossa casa em Perus, porque me sobe uma emoção ao cérebro que dá para tontear; mas o avô Joaquim me diz que tudo vai melhorar quando a senhora e papai estiverem mais fortes. Nós estamos todos unidos sem que eu saiba como é isso. O pensamento é uma força, mas não sei ainda explicar o que sinto. Mamãe, não fique parando o olhar em nossas lembranças. Tudo o que foi nosso – de nós três – dê a outras crianças em nosso nome. Ficará para nós o coração inteirinho, porque a senhora, papai, João Batista, Sheila e eu não nos separamos. Peça energias para nós nas preces do seu carinho de sempre. Mamãe, as lágrimas são forças de Deus em nossa vida, e por isso, nenhum de nós está livre de chorar, mas as nossas lágrimas devem ser orações – orações de gratidão e amor, paz e fé. Um dia estaremos todos juntos, mas não deseje vir para cá como quem força a entrada de uma casa desconhecida. Pouco a pouco, entenderemos as razões de tudo o que sucedeu. Rogamos para que a ninguém seja atribuída qualquer culpa pelo acidente. O veículo poderia estar sendo guiado por nós. Ninguém cria problemas de trânsito por vontade própria, como no caso em que nos vimos. Mamãe, queremos a paz, a paz de todos. Ajudem, a senhora e meu pai, a termos paz. Não se queixem. Vamos cultivar a saudade na igreja do amor ao próximo. Temos tantos irmãos nas calçadas e nas ruas, pedindo auxílio! Sejam eles, filhos também de seu coração. Aqui, muitos pais de meninos desamparados oram conosco pelos filhos que sofrem no mundo, mas eu sei que a senhora e meu pai serão auxílio e benção para esses meninos, filhos de tantos amigos bons que nos amparam aqui. Não posso continuar. Mamãe, abençoe os filhos que somos nós aqui, sem você, mas contando sempre com a senhora para ficar mais fortes. Deus nos auxiliará. Hoje, tenho mais fé. Em nome dos irmãos e em meu nome, deixo a vocês, em casa, o nosso beijo de respeito e de amor. E recebam, com o abraço do avô Joaquim, todo o coração do filho, sempre filho reconhecido
MARCOS CRIANÇAS NO ALÉM – 1977 - MARCOS
Uberaba, 12 de dezembro de 1975
EVANGELIZAÇÃO ME
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